Bahia e África reconectadas pela arte de Koffi Mensah

Retratos apresentam figuras fortes e marcantes, destacadas pela técnica desenvolvida pelo artista

A arte contemporânea produzida em África tem sido objeto de grande interesse por parte do Ocidente nessas duas primeiras décadas do século 21. Muito desse interesse é suscitado por grandes exposições em renomados museus e centros culturais, como também em bienais e feiras de arte pela Europa e nas Américas.

A África é um vasto continente composto por 54 países, com produção artística altamente diversificada, influenciada por diferentes contextos históricos, religiões, modos de vida e contatos externos.

Consequentemente, sua produção artística contemporânea reflete essa complexidade, que trata desde questões relacionadas ao domínio colonial até temas identitários e raciais.

é inevitavelmente perpassada pela construção ocidental do que é “ser africano”, perpetuando discursos essencialistas e eurocêntricos.

Na tentativa de se desvincular dessas armadilhas, instituições culturais buscam uma maior polissemia e polifonia em suas exposições através de curadorias compartilhadas ou autorrepresentacionais.

De toda sorte, são as exposições produzidas no Ocidente que, na maioria, fomentam o conhecimento que temos acerca da produção visual contemporânea do continente africano.

Talvez a mais impactante e recente exposição com essa temática tenha sido a Art Afrique –  que ocorreu no espetacularizado centro cultural da Fundação Louis Vuitton, em Paris, 2017. A mostra reuniu três coleções apresentando nomes consagrados como Chéri Samba e Calixte Dakpogan, mas também de artistas emergentes no cenário internacional como Omar Vistor Diop e Kudzanai Chiuri. Na minha visitação, fiquei impressionado pela diversidade de temas e de suportes das obras apresentadas, mas também pelo grande número delas que estão permanentemente fora do continente africano.

No Brasil, as exposições de arte contemporânea de artistas africanos têm sido menos numerosas, mas não menos ambiciosas. Em 2015, o Museu Afro Brasil de São Paulo organizou a exposição África Africans com mais de 100 obras de 20 artistas de diferentes países africanos. Entre eles, o ganense El Anatsui que havia ganho o Leão de Ouro na Bienal de Veneza daquele ano. Em 2017-18, o Centro Cultural Banco do Brasil reuniu cerca de 90 obras de 18 proeminentes artistas contemporâneos de 8 países africanos, na exposição Ex Africa.

A mostra passou pelas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Os soteropolitanos não tiveram a chance de conhecer de perto essa nova safra de artistas africanos.

Em Salvador, são poucas as oportunidades de visitar exposições de arte contemporânea do continente africano, o que é uma pena, considerando as relações históricas e culturais entre a Bahia e África. Assim sendo, e com a exceção de estudiosos, findamos conhecendo pouco ou quase nada do cenário artístico africano.

Portanto, foi salutar a exposição Raiz invisível, apresentada até outubro deste ano pelo artista Koffi Mensah, na galeria do Goethe-Institut Salvador.

Koffi Mensah é natural do Togo, África Ocidental, embora tenha se estabelecido no país vizinho, a Burkina Faso, onde em 2018 foi premiado com o Grand Prix du Dessin d’art. A exposição foi resultante da sua participação no Programa de Residência Artística Vila Sul, promovido pelo Goethe-Institut Salvador, e que desde 2016 já recebeu mais de 100 artistas de vários países. Essas residências são experiências enriquecedoras, tanto para os artistas visitantes como para a cena artística local, por promoverem colaborações artísticas e trocas culturais, além de, nesse caso específico, fomentar o intercâmbio entre o Sul Global.

Raiz Invisível constava de seis grandes obras que retratam divindades celebradas no Candomblé. O artista diz ter sido particularmente tocado ao observar a influência africana na religiosidade afro-brasileira, afirmando que o Candomblé “é uma religião nascida do encontro dos cultos tradicionais dos deuses Iorubás e das divindades Fon e Ewe”. Como artista engajado politicamente, ele também chama atenção que não podemos esquecer dos milhões de africanos desenraizados de sua pátria, cuja religião também teve o papel de atenuar a dor.

Os retratos apresentam figuras fortes e marcantes, destacadas pela técnica desenvolvida pelo artista. Ele recorre a recortes e furos sobre a lona preta ou branca, cuidadosamente emaranhadas entre si, para que não se desconectem. Por outro lado, a lona é sobreposta a um fundo feito de colagens de papéis pintados de branco ou preto, respectivamente. É através desse contraste de cores que as imagens emergem. É um trabalho minucioso, como podemos observar nas nuances da obra Oxumaré/Dan, na força estática da obra Xangô, ou na leveza do movimento da obra Abebe. Curioso observar a visão que um artista africano tem sobre as religiões afro-brasileiras, e a releitura que faz sobre elas.

De fato, os mais de 300 anos do regime escravocrata trouxeram para o Brasil diferentes povos desterritorializados do continente africano. Aqui resistiram à opressão do sistema de diversas formas, dentre elas o culto a suas divindades ressignificadas.

A heterogeneidade das religiões de matrizes africanas está associada à própria historicidade do tráfico Atlântico e ao congraçamento dos diferentes grupos étnicos. No caso dos Candomblés, as “nações” Ketu, Angola ou Jêje determinam sua crença em Orixás, Inquice ou Voduns, e sua identificação ao sistema lexical Iorubá, Banto ou Ewe-Fon, respectivamente.

Os terreiros, locais estruturantes dos cultos de origem africana, tiveram importante função na reconstrução de relações sociais e religiosas dos escravizados, tornando-se desde então lugares de resistência e preservação de memória, ou como destacou Muniz Sodré, personificando a “forma social negro-brasileira por excelência”.

A complexidade espacial dos terreiros, alguns deles compostos por variadas edificações tanto de função religiosa quanto habitacional, também refletem a releitura da África no Brasil. Vale ressaltar que os terreiros foram sistematicamente perseguidos e proibidos até as primeiras décadas do século 20. Só após mais de meio século ocorreu o reconhecimento cultural deles, com o tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em Salvador, no ano de 1984, pelo então Sphan. Essa valorização teve fundamental papel na luta contra o racismo e a intolerância religiosa.

Museus e Centros Culturais de arte contemporânea têm surgido no continente africano oferecendo um contrapeso às instituições ocidentais nas abordagens culturais de suas produções. Além disso,  promovem a permanência da produção contemporânea africana no próprio continente.

O Museu da Fundação Zinsou, na cidade de Uidá/Benim, estabelecido em 2013, é reconhecido como o primeiro museu dedicado à arte contemporânea do continente. Seguido pelo Zeitz MOCAA, na Cidade do Cabo/África do Sul, de 2017; Yemisi Shyllon Museum of Art, em Lagos/Nigéria, inaugurado em 2019; e mais recentemente o centro cultural Palais de Lomé, no Togo. Sem falar na Dak’Art, Bienal de Arte Contemporânea de Dakar que desde 1992 vem inserindo artistas africanos no circuito internacional.

O Palais de Lomé está instalado no antigo Palácio do Governador Colonial, construído em 1905 pelos alemães e serviu como residência presidencial do estado togolês pós-independência da França em 1960. Para além da importância histórica e arquitetônica, a edificação é muito bonita pelos elementos decorativos inspirados no Palácio do Rei Toffa no Benim. Uma requalificação encabeçada pelo governo federal culminou com a inauguração do centro cultural em novembro de 2019. Visitei seus espaços alguns meses depois e pude comprovar a grandeza do projeto que acomoda até cinco exposições simultâneas.

Dentre elas, particularmente, me impressionou a mostra Togo dos Reis, com curadoria do escritor Kangni Alem, do cenógrafo Franck Houndegla e do diretor teatral Gaetan Noussouglo. A exposição apresentava artefatos pertencentes aos reinos, chefias e comunidades tradicionais do Togo, intercambiados com intervenções de artistas contemporâneos como Sokey Edorh, Kodjo Wornanou e do Studio Piment, mostrando que a linha fronteiriça entre tradição e contemporâneo em África parece ser mais fluida do que a percepção ocidental consegue compreender. A exposição foi uma prazerosa descoberta das artes e identidades desse pequeno país. O novo centro é um sinal inesperado de abertura cultural por parte do historicamente repressivo governo togolês, ajudando a fomentar seu capital cultural e promover as comunidades artísticas locais.Arte contemporânea produzida em África tem sido objeto de grande interesse por parte do Ocidente –