“Teremos o direito de comprar ferro velho”, diz Amorim sobre acordo militar com EUA

Para ex-ministro da Defesa, Trump quer manter Bolsonaro submisso e não permitirá desenvolvimento estratégico do Brasil

Brazilian Defense Minister Celso Amorim speaks during an interview with foreign correspondents in Brasilia on March 11, 2014. Amorim spoke about the security preparations for the 2014 FIFA World Cup. AFP PHOTO / Evaristo Sa (Photo by EVARISTO SA / AFP)

O governo Bolsonaro assinou, no último domingo (8), na Flórida, um acordo militar com os Estados Unidos com o objetivo de ampliar a entrada do Brasil no mercado de defesa estadunidense, o maior do mundo. A decisão ocorreu durante uma viagem do presidente brasileiro ao país do Norte, que contou com reuniões com Donald Trump.

Apesar de ser vangloriado pelo governo Bolsonaro, para Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores e da Defesa nos governos Lula e Dilma, respectivamente, o Brasil não será beneficiado com o acordo.

Segundo a avaliação do diplomata, Trump deseja “colocar o Brasil debaixo do braço”, ou seja, manter Jair Bolsonaro completamente alinhado à política estadunidense com a finalidade de privilegiar o país norte-americano. “E se para botar o Brasil debaixo do braço for necessário fazer comprinhas ou vender algumas coisas de segunda mão, farão. Mas não podemos ter ilusões sobre isso”, analisa Amorim. 

A partir do acordo conhecido como RDT&E (sigla inglesa para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação), os países poderão desenvolver cooperação militar, parcerias na área da Defesa, além de compra de produtos como armamentos e equipamentos. 

“Não vamos ganhar nada. Vamos, talvez, ter o direito de comprar mais ferro velho deles, como ocorreu no passado. Eventualmente, uma ou outra coisa menor. Mas eles não nos deixarão ter nada de estratégico”, avalia o diplomata. 

Assinado por Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e por Craig Faller, almirante da Marinha dos EUA, o tratado bilateral tem sido considerado o principal resultado da designação do Brasil como aliado privilegiado extra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental, status concedido ao país em março do ano passado, durante visita do presidente brasileiro a Washington.

O acordo precisa ainda de ratificação dos Congressos de ambos os países. A expectativa no Itamaraty é de uma tramitação rápida na casa legislativa brasileira, assim como a que permitiu o uso da base de Alcântara, no Maranhão, pelos Estados Unidos. 

Além disso, durante o encontro entre os mandatários no final de semana, representantes do governo Trump reforçaram a escalada de pressão contra a Venezuela e endossaram contar com o apoio de Bolsonaro, que tem respondido às expectativas. Dias antes à ida aos Estados Unidos, o governo do Brasil retirou quatro funcionários de postos diplomáticos no país de Nicolás Maduro. 

“Não houve na história um momento de alinhamento tão grande com a política norte-americana”, critica Amorim. 

Confira entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: O Itamaraty afirmou que esse acordo entre Brasil e Estados Unidos é um passo para que os países “desenvolvam projetos conjuntos na área de defesa”. Quais impactos esse tratado pode trazer para o Brasil? O que ele prevê, de fato?

Celso Amorim: Acho que o tratado que, na verdade, os Estados Unidos têm, relativamente, em poucos países, é para colocar o Brasil realmente na órbita norte-americana em matéria de defesa. Obviamente se fala do Brasil exportar produtos mas, na verdade, vão ser produtos que se encaixem, digamos assim, nas necessidades norte-americanas.

Com isso, está se afastando de uma ótica que vinha sendo seguida com muita força no governo Lula e Dilma, e mesmo antes, que era ter uma visão multilateral do seu relacionamento de defesa. Nós tínhamos, por exemplo, uma relação muito privilegiada com a França, inclusive com o submarino nuclear, que é uma coisa muito importante. Os caças Gripen com a Suécia, que têm, inclusive, o código-fonte de armas, que seria transferido para o Brasil. Chegamos até a considerar também compra de artilharias antiaérea da Rússia, sem prejuízo de ter uma relação intensa com os Estados Unidos, como sempre tivemos. 

Agora, o que está ocorrendo é que o Brasil está sendo colocado na órbita norte-americana de uma maneira que nunca foi antes. Essa é nitidamente uma opção dos Estados Unidos, que se deram conta, talvez, que o Brasil é estratégico na América do Sul e na América Latina. Eles têm muita preocupação com o petróleo, veja agora o que está ocorrendo com os preços, inclusive isso desloca o xisto norte-americano no mercado. 

Não é à toa que eles têm tanto interesse na Venezuela e passaram a ter no Brasil. Esse é um aspecto fundamental. Outro aspecto é que isso está ligado a uma política de alinhamento total. Não houve na história um momento de alinhamento tão grande com a política norte-americana.  

Já que nós falamos da Venezuela, isso é ilustrativo. Dias antes do presidente ir para a Flórida, o Brasil fez um gesto de retirar seus diplomatas da Venezuela, como preparação para anunciar para que os diplomatas de Maduro saíssem [do Brasil]. Tudo isso, dentro de uma perspectiva de submissão, uma visão que nunca foi a nossa. Independente de governo mais à direita, mais à esquerda. O presidente Fernando Henrique Cardoso [PSDB] tinha relações normais com Chávez [ex-presidente venezuelano]. 

Acho que há uma decisão, como houve na Segunda Guerra Mundial, só que nosso presidente era Getúlio Vargas, que sabia negociar, levar em conta a realidade. Por que estou falando isso? Porque existe uma rivalidade crescente com a China e com a Rússia, e os Estados Unidos veem hoje, no Brasil, um aliado potencial. 

E o Brasil não vai ter grandes benefícios. O Vargas ainda conseguiu fazer a siderúrgica, algumas coisas. Acho que é possível que comprem alguma coisa, algum armamento, de menor importância no Brasil. Mas vamos ficar muito dependentes tecnologicamente e estrategicamente de um único provedor, e isso não é um bom no mundo de hoje.

Nesse cenário, podemos dizer que os interesses são mais políticos do que estratégicos?

Tudo é estratégia, mas é uma estratégia de subordinação, de subalternidade. De dizerem: ‘O mundo está assim, temos que fazer uma aliança desse tipo, e vamos nos subordinar ao que quiserem’. 

É curioso, porque de um lado o Trump realmente está dando uma atenção ao Brasil. Talvez os europeus resistam à questão da OCDE [entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] por causa da Amazônia, por outras questões, mas acho que o Trump vai querer que o Brasil entre.

Agora, no varejo, não dá nada. Até as próprias notícias da Reuters dizem que em relação às tarifas de aço e ferro, outras coisas que estão dependentes de um possível aumento de tarifa norte-americana alegadamente em função do dólar baixo no Brasil, que afetaria a competitividade da agricultura norte-americana, não estamos levando nada. Nós estamos cedendo e ganhando muito pouco.  

Do ponto de vista estratégico, acho que eles querem colocar o Brasil debaixo do braço. E se para botar o Brasil debaixo do braço for necessário fazer comprinhas ou vender algumas coisas de segunda mão, farão. Mas não podemos ter ilusões sobre isso. 

Quem interrompeu o acordo militar com os Estados Unidos não foi o Lula, foi o [ex-ditador Ernesto] Geisel. Porque via que as exigências eram descabidas. Então, acho que é um risco muito grande nos colocarmos dessa maneira.

Não sei o que os franceses ou suecos, com quem temos relações especiais em áreas realmente estratégicas de defesa, vão pensar dessa aliança. Porque é uma aliança também para a troca de informações, testes, avaliações. Até que ponto, com isso, não vai haver uma intromissão norte-americana na tecnologia desses países, que estaria sendo transferida para o Brasil. 

Não sei. Isso não vai estar no acordo, isso é o detalhe, a execução, o dia a dia. Quando se fala, por exemplo, de acordo de defesa cibernética parece uma piada. A única invasão cibernética que o Brasil sofreu foi dos Estados Unidos, durante o governo Dilma, comprovadamente, relacionada à Petrobras e toda a área de energia. É uma aliança entre o lobo e o cordeiro. 

O acordo tem sido vendido como inédito, como um grande feito do governo Bolsonaro. Qual uso político que o presidente pode fazer desse acordo?

Vão querer mostrar… Muita gente no Brasil vê nos Estados Unidos um modelo. Esquece que os Estados Unidos chegaram a isso depois de guerras, atitudes imperiais, exploração de outros países. Mas acham que tudo que tem nos Estados Unidos é bom e caiu do céu. E acham que agora vai cair do céu pro Brasil também ou que eles vão nos dar.

Nunca nos deram nada. Não sou eu que estou dizendo isso, são militares, generais que estão na reserva, embaixadores que foram de outros governos, prestigiados pelo FHC, pelo [ex-presidente José] Sarney e pelo [ex-presidente Fernando] Collor.

A verdade é que os Estados Unidos respeitam os países que se respeitam. O resto pode ser vendido como uma coisa: ‘Olha, estamos conseguindo tal acordo’. 

Mas até o acordo de venda de aviões da Embraer é conversa fiada, porque isso já estava sendo negociado durante nosso governo, durante o governo da presidenta Dilma. Não a venda da Embraer, que é coisa do Temer e deles agora, mas a venda de aviões já tinha sido feita por interesse deles.

Não vamos ganhar nada. Vamos, talvez, ter o direito de comprar mais ferro velho deles, como ocorreu no passado. Eventualmente uma ou outra coisa menor. Mas eles não nos deixarão ter nada de estratégico. 

Assim como não nos deixaram, no passado, desenvolver energia nuclear. Isso é uma coisa sabida, a pressão que eles fizeram para o Brasil entrar no tratado de não proliferação ou mesmo antes. Como não vão nos deixar de ter um submarino nuclear ou uma viação de caça de primeira categoria.

Agora, ser um país subordinado, um país que pode atuar como procuração deles, para alguma ação que não queiram tomar para não arriscar os próprios soldados, pode ser que aconteça. Se há ganho nisso, eu não vejo. 

Eu acho que o Brasil tem que ter uma boa relação com os Estados Unidos, nunca tivemos diferente. O ex-presidente Lula teve relação de igual para igual. A presidenta Dilma, apesar desse evento infeliz que foi a espionagem, retornou lá, foi aos Estados Unidos. 

As relações sempre foram boas e de muito respeito, inclusive em relação à Venezuela. Mas era uma relação de diálogo, hoje é uma relação de subordinação. Hoje eles definem a política e nós executamos, essa é a diferença.

Acredita que de fato as tropas brasileiras podem entrar em conflito com a Venezuela devido a essa pressão? Ou é preciso aguardar outras posições políticas do governo?

Já vi tanta coisa que achava que não podia acontecer, acontecendo, que não posso dizer a você que não. Eu espero que não ocorra isso, agora, realmente, quando se tira diplomatas e até os cônsules, que não possuem relações diplomáticas, e sim para a proteção dos brasileiros que vivem lá, e seguramente tem muitos brasileiros que continuam vivendo lá apesar das relações estarem afetadas na fronteira. Se se retira até os cônsules, eu não sei… Parece preparação para uma ação militar. Mas espero que na própria área militar, como demonstraram no começo do ano, haja bom senso e não ocorra nada.

O risco é sempre o da provocação. Agora, se não tem uma relação diplomática, não se sabe qual a reação deles, qual será a nossa reação. Não se sabe se uma provocação pode surgir de qualquer das partes, mas será provavelmente da nossa. O Brasil que está retirando os diplomatas. É muito preocupante tudo isso. 

Não acho que haja uma ação militar direta, programada. Acho improvável, mas acho que provocações desse tipo, que agravem a situação, podem ocorrer. Até porque, obviamente a tática para tirar [Nicolás] Maduro e colocar o [deputado opositor Juan] Guaidó não funcionou, então os Estados Unidos devem estar pensando em outras maneiras e “estamos aí para ajudar”.

Ainda sobre o acordo RDT&E, que precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional. Há certo tensionamento entre o governo e o Congresso, principalmente com as últimas declarações de Bolsonaro. Essa relação um tanto quanto instável pode atrapalhar de alguma forma a aprovação desse acordo? 

Gostaria de acreditar nisso, mas o antecedente de [base de] Alcântara me faz pensar que isso não é provável. É verdade que em Alcântara havia interesse também de governadores do Nordeste, uma parte da oposição acabou votando à favor. Nesse caso, talvez, isso não ocorra. Não sei. Já parei de fazer previsões. Deixa isso para os astrólogos. 

Com base na relação que vem sendo construída, qual a perspectiva para os próximos anos em relação à soberania do país e à própria posição do Brasil internacionalmente?

É muito triste. O que eu ouço e leio – não sou uma pessoa hoje em dia que tem informação em primeira mão, e faço questão de não ter pra não me meter em coisas que não tenho influência – mas tudo que eu ouço é sobre abertura para mineradoras na Amazônia, não só norte-americanas, mas canadenses.

Fico muito preocupado da venda da Embraer continuar e de tudo que caracterizava nossa soberania… Várias bandeiras que as Forças Armadas defendiam, a própria Embraer, por exemplo, que foi criada na Aeronáutica brasileira. A Amazônia sempre foi uma coisa preciosa, que nós defendemos e cuidamos. E a coisa está mudando de figura.

Acho que em um eventual e maior atrito com a Venezuela pode acabar trazendo soldados americanos para o Brasil, que já vieram no governo Temer, que foi uma coisa infeliz. Fico muito preocupado.Edição: Vivian Fernandes.  Foto: Evaristo Sá/AFP. Brasil de Fato.