O legado de Mandela, 30 anos depois

Ao deixar a prisão, líder da luta contra apartheid se transformou no construtor da nova África do Sul

Foi difícil, naquela noite, pegar no sono. A contagem regressiva para o momento histórico martelava minha cabeça.

Rolava de um lado a outro, na cama do hotel na sul-africana Cidade do Cabo, na véspera da libertação do então preso político mais famoso do mundo, Nelson Rolihlahla Mandela (1918-2013)

O calendário apontava sábado, 10 de fevereiro de 1990. No dia seguinte, o prisioneiro 0221141011, condenado à prisão perpétua por traição e sabotagem, cruzaria o portão da penitenciária de Victor Verster, depois de 27 anos no cárcere.

Seria um momento crucial no desmonte do regime racista do apartheid, já em estado terminal.

u havia desembarcado na África do Sul a 2 de fevereiro, como enviado especial da Folha. Deixei a bagagem na recepção do hotel, me troquei no banheiro do lobby, pois ainda não tinha acesso ao quarto, e rumei em alta velocidade ao Parlamento, para acompanhar um discurso histórico.

 

O presidente Frederik de Klerk, versão sul-africana do reformista soviético Mikhail Gorbatchev, liderava o processo de mudanças. Os pilares da tragédia chamada apartheid estavam carcomidos.

No discurso do dia 2, De Klerk anunciou a libertação de Mandela. Não revelou, no entanto, a data.

O regime de segregação racial buscava administrar, a conta-gotas, seu próprio fim. Tentava, no caso da soltura do maior líder oposicionista, evitar convulsões sociais.

Entre jornalistas, havia a expectativa de Mandela ser solto de madrugada, sem aviso prévio, a fim de se evitar grandes manifestações, ao menos de início.

Passamos a trabalhar e a dormir grudados a pagers montados para dar o alarme, a qualquer momento, do fim do aprisionamento do líder antiapartheid.

O pager soou no sábado, dia 10, mas convocando, com urgência, para entrevista coletiva do presidente sul-africano. Às 17h02, num salão do Parlamento, De Klerk anunciou data e hora da libertação: 11 de fevereiro de 1990, às 16h.

Na frente da prisão e na hora marcada, acotovelei-me em meio à multidão. Havia jornalistas, ativistas políticos. Muitos moradores da região acorreram ao local.

Forte esquema de segurança se impunha em vias de acesso a Victor Verster. 

Às 16h15, Mandela e sua mulher, Winnie, atravessaram o portão da penitenciária com as mãos dadas.

Mantinham o outro braço levantado, com o punho cerrado. Essa imagem, captada 30 anos atrás, celebrizou um dos momentos mais relevantes das mudanças do final do século 20.

No dia seguinte, dirigi-me à casa do arcebispo Desmond Tutu, importante aliado de Mandela. O líder do Congresso Nacional Africano concederia a primeira entrevista coletiva após o cárcere.

Havia 260 jornalistas espremidos no jardim da mansão onde Mandela dormira sua primeira noite em liberdade, depois de quase três décadas na prisão. Logo de início, o ex-prisioneiro fez questão de exalar descontração.

Contou piada e falou do seu café da manhã fora das grades. No cardápio, flocos de cereais, bacon, ovos e chá com leite.

Quando um jornalista sul-africano se identificou e disparou a pergunta, Mandela, antes de responder, comentou: “Ah, então é você! Li vários de seus textos na prisão!”.

Em sua entrevista coletiva, o ex-prisioneiro enfatizou o caminho da pacificação. Descreveu a luta armada, opção de décadas anteriores, como “resposta à violência do apartheid”.

Mandela, o líder da luta contra o regime racista, transformou-se em Mandela, o conciliador e construtor da nova África do Sul.

Desmontou o regime racista e impediu que o país mergulhasse numa guerra civil. Gravou marcas indeléveis na história contemporânea.

Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.