Africanos escravizados foram tiveram roubadas sua liberdade, identidade e cultura — Foto: Getty Images via BBC
Durante mais de três séculos, entre 1503 a 1870, nove milhões de pessoas foram arrancadas de suas casas e aldeias em diversos locais no continente africano e transportadas contra a vontade para as Américas para trabalharem como escravas nas lavouras e cidades do Novo Mundo.
A diáspora forçada foi tão grande que não está gravada apenas na história, mas também no genoma das populações atuais das Américas.
Um estudo internacional, liderado por pesquisadores do Brasil, revelou a influência da escravidão na genética das populações do continente americano.
Segundo o biológo Eduardo Tarazona Santos, líder do estudo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o objetivo foi responder a três questões:
- Existe uma correspondência entre a origem geográfica de diferentes regiões da África e determinados destinos da diáspora nas Américas?
- A miscigenação biológica acompanhou a dinâmica da chegada dos escravizados?
- Considerando a dimensão da diáspora, os africanos trouxeram para o Novo Mundo toda sua diversidade genética?
Os dados analisados, diz o pesquisador, mostraram que a resposta é “sim” para as três questões.
Segundo Santos, há uma certa “organização das ancestralidades”: as regiões mais ao oeste da África tiveram maior proporção de pessoas levadas para o Caribe e para América do Norte, enquanto povos do sul e leste da África foram mais escravizados no sul do Brasil.
Comparação de dados genéticos
Em geral, as pessoas escravizadas levadas para a América tiveram origem predominantemente em países como Nigéria e Gana, no centro-oeste do continente.
Em direção ao norte do Novo Mundo, no Caribe e América do Norte, aumentou o tráfico de pessoas de países como Senegal e Gambia, mais a oeste. E para o sul do Brasil vieram povos bantu do sul e leste da África.
Para responder à segunda pergunta — se a miscigenação biológica acompanhou a dinâmica da chegada dos escravos — os cientistas compararam os dados genéticos das populações com informações de fontes históricas sobre o número de embarques e desembarques da África nas Américas durante a diáspora.
“Essa comparação revelou que o período crítico entre 1750 e 1850, quando houve picos na chegada de escravos, foi acompanhado de uma intensificação da miscigenação em todo o continente americano”, explica Santos.
O Caribe e a América do Norte receberam mais pessoas escravizadas vindas de países do oeste da África — Foto: Getty Images via BBC
O biológo conta que, quando se usa unicamente dados genéticos de populações miscigenadas do Novo Mundo, é possível verificar que a miscigenação data de entre 1750 a 1850.
“Interpretamos isso como um indício de que o período de maior miscigenação das Américas coincidiu com o de maior chegada dos escravos”, explica Santos.
“Ou seja, é como se eles e seus descendentes tivessem chegado e ‘quase imediatamente’ se miscigenado, pelo menos em termos estatísticos.”
No caso da terceira questão — se os africanos trouxeram para o Novo Mundo toda sua diversidade genética — os pesquisadores notaram, pela primeira vez, que a diáspora para as Américas foi tão grande e duradoura, que os escravizados trouxeram toda a diversidade do seu continente de origem, que hoje está presente na componente africana dos nossos genomas miscigenados.
“Em contrapartida, nos últimos 500 anos, nós aqui nos misturamos mais que do que lá e a parte africana do nosso genoma fiou mais homogênea entre as populações daqui”, diz Santos. “Um brasileiro do sul e um afro-americano são geneticamente mais similares que um moçambicano e um nigeriano, por exemplo.”
Relevância médica
Além de possibilitar que se entenda melhor a ancestralidade dos povos americanos, os resultados têm relevância médica, diz Santos, pois significam que os componentes genéticos responsáveis por doenças estão mais homogeneamente distribuídos entre os diferentes povos daqui.
Santos explica que a aplicação dos avanços da medicina genômica e de precisão para as diferentes populações só será possível se for compreendido como estão distribuídas as variações do DNA no mundo.
Hoje, sabemos bastante sobre os europeus e as doenças genéticas presentes nos genomas herdados da Europa, e muito pouco sobre outros povos, como os da África.
“Por isso, nós concebemos nosso estudo pensando mais na componente africana das populações das Américas”, conta. “Nosso trabalho contribui para compreender melhor a diversidade genética africana e como estão distribuídas as variantes vindas de lá nas Américas. Os diversos povos não-europeus no mundo poderão se beneficiar da medicina genômica unicamente se conhecermos como são do ponto de vista genético.”
Segundo ele, o fato de ter descoberto que a diáspora, por ser tão grande, importou a maior parte da diversidade genética africana para as Américas, implica que a maioria das variantes de lá (algumas delas que causam ou contribuem para o desenvolvimento de doenças) estão também presentes no Novo Mundo.
“Por outra parte, a miscigenação entre indivíduos de diferentes origens africanas tem espalhado mutações genéticas que na África estão mais localizadas geograficamente ao longo de boa parte do continente americano”, diz Santos.
O tráfico de pessoas da África para as Américas durou mais de três séculos — Foto: Getty Images
Essa descoberta é importante para compreender a distribuição do DNA de origem africana e de variantes genéticas que causam doenças como fibrose cística e tipos de câncer hereditários, como o de mama.
“Os novos métodos de diagnóstico molecular para detectar estas variantes genéticas têm que considerar este fato. E assumir que uma variante localizada em algum lugar da África pode estar dispersa por boa parte do continente americano”, diz Santos.
Como foi feito o estudo
O artigo científico “Impacto da Diáspora Africana na Genética das Populações das Américas”, assinado por 37 pesquisadores de 18 instituições foi publicado nesta terça (3) na revista cientícia Molecular Biology and Evolution (Biologia Molecular e Evolução).
O estudo começou durante o período de doutorado sanduíche do pesquisador brasileiro Mateus Gouveia no Instituto Nacional de Saúde dos EUA, financiado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
“Durante este período, eu e o professor Santos fizemos várias colaborações científicas com diferentes laboratórios daquele país, sendo possível obter um grade acervo de dados genômicos de africanos para serem incluídas na pesquisa”, conta. Ou seja, não houve coleta direta de DNA de pessoas das populações estudadas.
A pesquisa foi realizada durante três anos por várias instituições do Brasil, Estados Unidos, Portugal e Peru. Os cientistas analisaram a diversidade do genoma de 6.267 indivíduos de 25 populações.
Onze delas foram africanas: mandingas, do Senegal; mendes, de Serra Leoa; iorubás e igbos, da Nigéria; kwas e gurs, consideradas uma só, de Gana; herero, mbukushu e tswana, de Botswana; sandawe, da Tanzânia; nilotas, de Uganda; e luhya do Quênia.
Nove foram populações miscigenadas das Américas: afro-americanos de dois locais dos Estados Unidos; de Salvador, Bambuí (MG) e Pelotas (RS); da costa central e norte do Peru; de Medelín, na Colômbia; e de Barbados e Porto Rico, no Caribe.
Também foram analisadas duas populações europeias (espanhóis e norte-americanos de Utah de ascendência europeia) e três nativas americanas (aimará, ashaninca e shimaas, todas do Peru). Africanos escravizados foram tiveram roubadas sua liberdade, identidade e cultura — Foto: Getty Images via BBC. Matéria, Globo