Interiorização permitiu expansão do cinema baiano, mas recurso federal ainda é necessário

Dois dos principais polos de produção cinematográfica baianos estão no interior. Ligados à academia, se localizam em Vitória da Conquista, no Sudoeste do estado, e no eixo Cachoeira-São Félix, no Recôncavo.  

Destes dois locais são provenientes não só sucessos recentes, como “Café com Canela” e “Ilha”, de Ary Rosa e Glenda Nicácio (Rosza Filmes), mas outras obras que circulam por mostras e festivais mundo afora, como “O fantasma de Glauber Rocha”, de L.H. Girarde.  

Eles são demonstração da expansão da sétima arte na Bahia, mas isso significa que a producão e o acesso estão mais fáceis? Não necessariamente. 

O assunto ganhou destaque nas últimas semanas, após o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem 2019) ser “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”. Na Bahia, de acordo com profissionais do audiovisual ouvidos pelo Bahia Notícias, a produção local imprime cada vez mais sua marca, mas muitos ainda dependem fundamentalmente de recursos federais para chegar às telonas. A não ser que se busque soluções criativas para contornar a verba curta. 

A movimentação no interior é fruto de uma geração de realizadores incentivados pelo acesso e a interiorização dos cursos de cinema. E Állan Maia fez parte desse processo. Egresso do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o rapaz é um dos jovens da Travessia Filmes, uma produtora independente fundada por ele junto com quatro amigos – inclusive de outros cursos. “A Travessia surge para a gente falar um pouco mais do Recôncavo, de Cachoeira e São Félix principalmente. Tínhamos uma vontade de trabalhar os filmes abordando aspectos estruturais e de vivência da população local”, conta, revelando que, até então, cinco realizações já foram produzidas. 

“A gente faz mais filmes tirando do nosso bolso, ‘Enquanto eu for lembrado’ [filme produzido por Állan como trabalho de conclusão da graduação] foi feito mesmo com uma vaquinha online e um pequeno apoio da prefeitura de Cachoeira, que entrou dando um apoio arcando com os lanches”, disse Maia. A Travessia também organiza oficinas para estudantes de escolas públicas da região para a execução de conteúdos audiovisuais.
Ary Rosa e Glenda Nicácio (Rosza Filmes) | Foto: Reprodução 

A realidade próxima que o cineasta relata é frequente no campo de produções desse novo período. Falar sobre vivências comuns ao cotidiano brasileiro, mas pouco ou nunca vistas, parece ser uma premissa. 

A coordenadora do curso de cinema da Federal do Recôncavo, professora Ana Rosa Marques, defende que as narrativas feitas no Recôncavo abordam questões identitárias através de um olhar das pessoas que as protagonizam. “A gente não tinha essas narrativas vistas sobre o olhar das próprias pessoas que vivem isso e agora, com esses realizadores instrumentalizados para trabalhar essas linguagens, você começa a enxergar essas narrativas pelos próprios protagonistas destas realidades”, reflete. 

Ana Rosa atribui ao cinema baiano, especificamente ao que é gerado no Recôncavo, o feito de ter pautado o que ela pontua ser “uma série de transformações no próprio seio do cinema brasileiro”. “Há uma emergência de cineastas negros no cinema nacional e estudos comprovam que coletivos como o Tela Preta e o Rebento foram fundamentais para notabilizar esses autores negros”, argumenta, se referindo a grupos advindos do alunado da academia “reconcaviana”. 

Para a professora, nesse embalo, as ações de exibições públicas, a formação de atores, a prática de debates e a organização de cineclubes incidem numa nuance que beira a democratização na produção, no consumo e na distribuição. 

FARINHA POUCA, MEU PIRÃO PRIMEIRO
De acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), há uma sala de cinema para cada 129 mil habitantes na Bahia. Cachoeira, por exemplo, tem apenas uma sala de cinema, o Cine Theatro Cachoeirano, no Centro Histórico. Depois dali, só há outras salas em Feira de Santana (a cerca de 40 km) e em Santo Antônio de Jesus, a 60 km. Ainda assim, a realidade das três cidades é rara na Bahia, em que dos 417 municípios, apenas 16 possuem salas de cinema. Grande parte das 114 salas, mais precisamente 65 delas, estão em Salvador. 

Na capital também se concentra a maioria dos recursos destinados à produção cinematográfica da Bahia. Segundo dados disponibilizados pelo pesquisador André Araujo, coordenador do projeto intitulado “Audiovisual baiano: pesquisa e análise de mercado”, entre 2008 e 2018, 91,3% dos R$ 201,1 milhões investidos no setor foram para conteúdos soteropolitanos. Das 834 obras produzidas no mesmo período, a maioria foi financiada por recursos federais. 

FOMENTO RAREFEITO, MAS ESSENCIAL

Às custas da dependência de recursos e incentivos, se não fosse o rarefeito fomento, mesmo com o esforço coletivo, o volume fílmico não seria tão expressivo.  

E o cenário não parece ser tão positivo se consideradas as sucessivas sugestões do Palácio do Planalto de que haverá cortes de recursos para a indústria audiovisual. O contexto parece repetir o que o cinema tupiniquim enfrentou com o fim da Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme), nos primeiros anos da década de 1990. 

“Em 2014 a gente conseguiu ganhar o edital do Irdeb [Instituto de Radiofusão da Bahia] junto com a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual para o ‘Café com Canela’, que é a nossa primeira grande produção”, comenta o mineiro Ary Rosa, parceiro de empreitadas com Glenda Nicácio. 

A produção que ele cita é nada menos que uma das selecionadas do International Film Festival Rotterdam e a vencedora dos prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Atriz (com Valdinéia Soriano) e Melhor Filme pelo Júri Popular no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2017 – o que lhe rendeu o Prêmio Petrobras de Cinema e a distribuição no circuito comercial. 

Disponibilizado também na televisão e nos streamings, “Café com Canela” foi o ponto inicial para “Ilha”, outro projeto financiado pelo Fundo Setorial do Cinema e que no último final de semana levou a categoria Encenação na Mostra Sesc de Cinema, em São Paulo. 
L. H. Girarde | Foto: Reprodução /  Instagram 

Em Vitória da Conquista, terra do cinema-novista Glauber Rocha, os esforços coletivos se materializam em espaços como a Mostra Cinema Conquista, organizada anualmente. 

Lá, para L. H. Girarde, a cidade, que é rica em iniciativas e em artistas, “carece de incentivos”. “Tivemos um edital agora, o primeiro da prefeitura em muitos anos, para curta-metragens”, exemplifica. 

O passo-a-passo na circulação e na viabilidade de um filme independente é tortuoso. A alegação do cineasta radicado em Conquista Daniel Almeida é de que a formação não é suficiente para preparar alguém para o mercado.  

Entendendo essa perspectiva, a demarcação de uma estratégia focada na montagem de núcleos criativos de roteiro e a participação em rodadas de negócio foram essenciais para a preparação das propostas de sua produtora para a viabilidade em editais. Sobre as diferenças ele destaca: “A gente tá no início,