Movimento de estudantes universitários durante o dia, burburinho de filmes no cinema durante a noite. A descrição poderia se encaixar facilmente em algum shopping da cidade, mas fala, na verdade, sobre a Baixa dos Sapateiros. Quem viveu a Salvador dos anos 30 conheceu uma realidade diferente na avenida oficialmente batizada de JJ Seabra. Hoje esquecida pelas autoridades a avenida, que já foi o principal centro de compras de Salvador, também foi berço da cultura na cidade.
No final do século XVIII, a Baixa dos Sapateiros já contava com uma casa de ópera, mas foi com a chegada dos cinemas que o lugar começou a ganhar importância e ser referência também quando assunto eram as atividades culturais. “A Baixa concentrava alguns dos cinemas mais importantes que a cidade teve. Jandaia, Pax e Tupi. Durante um bom período do século XX a Baixa dos Sapateiros concentrou parte importante das opções da cidade na época em que cinemas de rua eram a única possibilidade que existia”, explica o historiador Jayme Nascimento.
Dentre os equipamentos, o cinema Jandaia é o mais conhecido. Além de filmes, o espaço exibia apresentações ao vivo. Segundo os historiadores, o lugar começou a perder prestígio na década de 80 com o surgimento dos cinemas de shopping. Mesmo assim, seguiu exibindo filmes até os anos 90, quando fechou as portas depois de um período exibindo filmes pornográficos e de artes marciais. Em 2015, o prédio do Cinema Jandia foi tombado pelo governo do estado.
Antes de ser ‘trocado’ pela modernidade dos shoppings, o Jandaia foi moderno por si e inverteu um conceito comum às casas de espetáculo da época. “Inicialmente os cinemas funcionam em casas de teatro. Inicialmente eram cine teatros que eram construídos, porque naquele momento a força maior era do teatro e o cinema foi sendo integrado. Eram salas de teatro que também projetavam os filmes. O Jandaia já é pensado com aquele tamanho para ser um cinema que incorpora o teatro e ser uma coisa grandiosa”, explica Nascimento.
Além do fator novidade, o cinema fez com que um público específico frequentasse o lugar: “O Jandaia foi um dos maiores que a cidade já teve. Dos mais completos. Mais luxuosos. Um prédio que foi pensado para ser um cine teatro. Que recebia pessoas de classe alta e classe média. E que fazia parte do cenário não só da Baixa dos Sapateiros mas da cidade como um todo quando se falava de cinema”, conta o historiador.
Cultural e intelectual
Além das opções de programas culturais, a Baixa do início do século XX concentrava também a vida universitária da cidade. Era na região que se instalaram as primeiras faculdades da cidade. Os estudantes de Medicina, Direito e Belas Artes, primeiros cursos universitários oferecidos na capital, precisavam também circular pela Baixa. “Não era uma área degradada como hoje. Moravam pessoas de alto poder aquisitivo, justamente por estar próximo do centro histórico, das três principais escolas superiores e ser esse centro cultural, Era uma área muito viva”, detalha o professor.
A presença na música também é outro aspecto que chama atenção. “Salvador durante muito tempo era conhecida no mundo por uma via: a Baixa dos Sapateiros. Estar na música mostra muito a relevância desse lugar para cidade, do ponto de vista da sociabilidade, das relações comerciais, entre tantas outras facetas importantes”, avalia o historiador Rafael Dantas.
Quem morou no lugar lembra com carinho de como tudo acontecia. “Tinha um carnaval bom, a rainha do Carnaval passava em minha porta. Era uma festa”, conta a aposentada Esmeralda Araujo, de 87 anos, que teve na Baixa dos Sapateiros o seu primeiro endereço em Salvador. “O carnaval de lá era forte, patrocinado pelos próprios comerciantes, que conseguiam muitas vezes fazer uma festa maior do que o Carnaval da elite, que passava alí pela Rua Chile”, lembra o jornalista Nelson Candena.
E o futuro?
Se no passado o fervo cultural lotava a Baixa dos Sapateiros, os estudiosos acreditam que equipamentos como o cinema Jandaia podem ajudar a avenida a voltar a ser atrativa. “Poderia ser feito o que foi feito com cinema Glauber Rocha, se repensou, se dividiu, se transformou. O que era um único espaço se transformou em cinco salas, com café, com livraria. E passou a ser um lugar muito procurado, então nem precisa mudar a destinação do prédio”, avalia Jayme Nascimento.
Para o historiador, o costume de buscar os cinemas fora dos grandes shoppings já é uma tendência em Salvador, e pode ajudar a baixa. “Já faz algum tempo que tem acontecido esse movimento de trazer o cinema para fora da concentração dos shoppings, isso mostra que é possível. Que tem público para frequentar. As pessoas podem frequentar da mesma forma que frequentam o próprio Glauber. O que precisa é o interesse tanto privado quanto público. Mesmo que a pessoa não vá pelo filme, se você restaurar todo aquele esplendor, não é possível que as pessoas passeando não vão minimamente conhecer”, defende Nascimento.