“Lembro que quando descobri que eu estava com chikungunya e comuniquei aos meus chefes, um deles até falou: ‘poxa, com a pandemia, as doenças comuns deveriam ser suspensas’”, relatou Maria Cardoso, advogada de 23 anos que contraiu a virose no início da pandemia do coronavírus. Assim como ela, a população e os órgãos de saúde viraram as suas atenções para a principal crise sanitária que passou a assolar o mundo há quase um ano. Outras doenças, porém, não deixaram de existir.
Na Bahia, o Aedes Aegypti aproveitou o momento de esquecimento para intensificar a sua ação. As notificações de arboviroses transmitidas pelo mosquito como a dengue, a chikungunya e a zika aumentaram no ano passado em relação a 2019.
De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), em 2020, foram registrados 82.966 casos prováveis de dengue em 404 municípios do estado. No mesmo período de 2019, foram notificados 67.515, o que representa um crescimento de quase 23%.
Também foram apontadas 40.849 infecções prováveis de Chikungunya em 311 cidades da Bahia. Já em 2019, foram indicadas 10.439, um salto de 291,3%.
Em relação à zika, no ano de início da pandemia do coronavírus foram identificados 4.475 contágios prováveis em 180 regiões do estado. No ano anterior, foram registrados 3.381. Estes dados apontam que os casos subiram 31,8%.
Em Salvador, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), as infecções pela dengue passaram de 9.356 casos em 2019 para 10.601 em 2020; pela chikungunya, de 3.993 para 12.004; pela zika, 831 para 1.245. O levantamento mostra um aumento de, respectivamente, quase 22%; praticamente 67%; superior a 33% na cidade.
Saiu de foco
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um dos principais institutos de pesquisa científica do Brasil, teve os seus estudos sobre arboviroses e outras doenças que não fossem a Covid-19 atrasados e reduzidos durante a pandemia por conta da urgência de uma solução contra o vírus que causou mais de 2 milhões de mortes no mundo e ultrapassou os 230 mil óbitos no Brasil e 10 mil na Bahia.
A produção de uma das vacinas contra a Covid-19, em parceria com a Universidade de Oxford e a empresa farmacêutica AstraZeneca, é feita no país pela Fiocruz.
“Devido ao fato de ter agora uma pandemia, uma situação sanitária grave, isso impactou demais nas outras doenças e também na pesquisa porque nós estamos muito mais voltados, agora, para a questão do coronavírus”, afirmou a médica infectologista e pesquisadora da Fiocruz Bahia, Fernanda Grassi.
Segundo a especialista, o instituto está funcionando em regime de rodízio, apenas com serviços essenciais. “Então, evidentemente, algumas pesquisas foram atrasadas por conta de não podermos estar todos os técnicos e estudantes ao mesmo tempo no instituto”, explicou.
“Houve, sim, uma perda, sobretudo no ano passado, em relação ao avanço das pesquisas. E isso foi em todos os lugares do mundo, não só aqui”, concluiu Fernanda.
Essa “pausa” foi percebida por Maria Cardoso, 23. “Eu senti muito que essa doença foi esquecida, ignorada”, disse a advogada, que contraiu a chikungunya no final de março de 2020. Ela fez questão de relembrar a existência das infecções nas redes sociais. “Sempre reforçava com meus amigos e conhecidos: ‘tomem cuidado, eliminem os focos do mosquito porque vocês não fazem ideia do quanto essa doença dói, do quanto ela limita’”, exprimiu.
Maria também foi uma das pessoas que ficou desatenta com as arboviroses, que costumavam ser uma das principais preocupações na Bahia, por conta do coronavírus. “Eu realmente não estava me preocupando com este vírus. Fui pega de surpresa”, revelou.
A bacharel, moradora do Acupe de Brotas, falou que quando isso aconteceu ela acionou vizinhos para resolver o problema na região. “Falei com o condomínio onde moro para tomarem algumas medidas a mais de prevenção. Os moradores da rua se juntaram e contrataram um fumaceiro para repelir o Aedes Aegypti”.
Medo de outro contágio: arboviroses x coronavírus
“Só fui quando vi que não tinha mais jeito”, disse Maria, sobre ter procurado uma assistência médica especializada somente cinco meses após os seus primeiros sintomas. “Eu não tive coragem de ir logo em um reumatologista porque eu estava com medo da Covid-19”, explicou. Ela também solicitou o exame domiciliar de diagnóstico da doença ao laboratório.
Durante a doença, ela foi acompanhada pela tia, que é médica, com troca de mensagens e fotos pelo celular. “Eu já estava praticando telemedicina”, brinca. A solução de atendimento à distância se popularizou alguns meses depois por conta da quarentena.
Sintomas
“É uma doença que eu não imaginava que causa tanto sofrimento”, relatou Maria sobre os sintomas da chikungunya. “Não conseguia abrir uma torneira, prender o meu próprio cabelo, nem tirar a minha própria roupa porque todas as articulações doíam”, contou a advogada. Ela teve febre, ficou com manchas vermelhas pelo corpo, as articulações doloridas e inchadas e feridas na boca. Chegou a não conseguir andar e teve dificuldades para comer.
Mesmo após ter passado por um tratamento, ela afirma que as dores ainda não passaram completamente. “Às vezes eu ainda sinto”, disse.
“A dengue, a chikungunya e a zika têm manifestações similares. Parece uma síndrome gripal”, explicou Fernanda, infectologista. Segundo ela, as pessoas contaminadas podem ter febre, dor de cabeça e atrás dos olhos, fraqueza, dores nas juntas (artralgia), manchas na pele, entre outras coisas.
O diagnóstico, porém, não é possível de ser feito apenas pelos sintomas, afirma a médica. “É preciso fazer os testes, pesquisas de anticorpo para cada um dos patógenos”, esclareceu.
Maria contou que além dela, o seu avô, de 94 anos, Tarcício Clodoaldo Cardoso, também teve a chikungunya. “Como ele é idoso, ainda foi pior. Ele tinha alucinações e precisou ser internado”, disse. Segundo ela, alguns dias após a sua alta do hospital, ele foi diagnosticado com a Covid-19.
O Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) informou que atendeu 31 pacientes com dengue em 2019 e 10 em 2020, uma diminuição de cerca de 67%. Já com chikugunya foram de 2 para 15, um aumento de 87%.
O Metro1 entrou em contato com os principais hospitais de Salvador para solicitar dados de atendimentos e internações por arboviroses, mas alguns informaram que as informações são consideradas sigilosas e outros não retornaram.
O Hospital São Rafael, assim como o Hospital Aliança, que emitiu uma nota explicativa, informou que não podem ser fornecidas quaisquer informações sobre atendimentos médicos. “O Hospital Aliança, seguindo as normas institucionais de segurança e sigilo da informação, não fornece informações sobre pacientes internados. Os casos de pacientes que dão entrada com doenças de notificação compulsória são informados às autoridades competentes, que são responsáveis pela devida divulgação oficial das informações”, disse o comunicado.
Medidas de enfrentamento
Para enfrentar essas doenças e evitar o contágio da população, principalmente durante a crise do coronavírus, responsável pela lotação de hospitais no país, medidas diretas de enfrentamento ao mosquito transmissor da doença precisam ser tomadas. Elas são de responsabilidade dos municípios, informou a pasta estadual.
O departamento de saúde de Salvador afirmou que a prefeitura conta com a ajuda de equipes do Centro de Controle de Zoonoses para realizar este trabalho. De acordo com a secretaria, são feitas ações diárias nos bairros nos 12 Distritos Sanitários de Salvador. São elas a identificação e eliminação de focos do Aedes Aegypti, além do borrifamento de inseticida com uso de um atomizador motorizado para reduzir a infestação do vetor na fase adulta.
Além disso, a SMS acrescentou que desde 2019 a gestão da capital realiza:
– Mutirões para retirar entulhos e diminuir o risco de proliferação do mosquito transmissor, em parceria com a Empresa de Limpeza Urbana do Salvador (Limpurb);
– Implementação de armadilhas para capturar o Aedes Aegypti e inibir o desenvolvimento dele nos lares;
– Atendimentos diários da população pela Ouvidoria da Prefeitura (número 156);
– Edições especiais para o combate ao mosquito semanalmente em locais estratégicos analisados a partir do índice de infestação na cidade.
Essas ações continuaram sendo feitas em 2020 e agora, em 2021. A secretaria destaca que para enfrentar o mosquito transmissor da dengue, chikungunya e zika é necessário o apoio da população. Cerca de 80% dos focos identificados na capital são encontrados dentro das residências, de acordo com os dados do município.
“Para controlar o contágio, deve ser evitado o acúmulo de água. Então o recomendado é não deixar recipientes ao ar livre e fazer a coleta de lixo para que não ocorra a proliferação dos mosquitos”, indicou a especialista, Fernanda Grassi.Foto : Bruno Concha / Secom.Metro1.