Destruição da floresta ameaça cultivo das plantas medicinais Guarani Kaiowá: “São nossa cura”

Mesmo confinados pelo agronegócio, indígenas utilizam plantas na medicina tradicional, inclusive contra covid-19

O uso das Pohã Ñana, como são chamadas as plantas medicinais pelos Guarani Kayowá, é um ritual que começa na colheita. As mestras e mestres, ou ñanderus e ñandesys, precisam pedir autorização espiritual para colher e para fazer remédios.

“Hoje as nossas plantas medicinais tem um valor muito alto pra nós, a gente depende muito delas. Como professora, mulher, avó e mãe, vejo a necessidade de continuarmos trabalhando com elas. Eu não digo apenas conscientizar, mas fazer um trabalho mesmo, falar que elas fazem parte da nossa vida e são responsáveis pela nossa cura”, pontua a indígena Elda Kaiowá, que é diretora de uma escola dentro da Terra Indígena Amambai.

Uma pesquisa da Universidade Federal da Grande Dourados aponta que 31 espécies de plantas de uso terapêutico da etnia oferecem benefícios ao sistema respiratório. Por isso elas foram – e ainda são – usadas pelos Guarani Kayowa no enfrentamento à covid-19.

Plantas como o Pacuri e o cipó-neve servem para o tratamento da pneumonia. Cambará-de-folha-grande e cambará-do-mato para as doenças brônquio pulmonares.

“Quem está com dor no estômago tem uma planta, quem está com DST tem outras. Se está com problema no rim, na vesícula ou em outros órgãos também. As mestras tradicionais conhecem os remédios, mas eles deve ser acompanhados do canto, do ritual”, diz a professora e Coordenadora do Fórum Nacional de Educação Indígena, Teodora de Souza.

No Mato Grosso do Sul, todo esse conhecimento é ensinado nas escolas indígenas, que reúnem pelo menos 200 educadores pertencentes às diferentes etnias que habitam o estado. Entre os Guarani Kaiowá, a prática pedagógica têm fortalecido a autoestima e ajudado a valorizar línguas maternas e saberes ancestrais, incluindo o uso de ervas medicinais.

“Antes, a educação era uma estratégia para anular nossos saberes. Mas na prática, na nossa vivência, nunca ninguém tirou de nós esses saberes, que são ancestrais. Hoje, através da escola, procuramos fazer pesquisa com alunos, crianças, jovens, adolescentes que já não sabem mais sobre a importância das plantas medicinais. Estamos trazendo novamente esse conhecimento e mostrando pra eles a importância dele”, analisa Teodora, que leciona na Reserva indígena Jaguapiru.

Retomada

Para as educadoras ouvidas pelo programa Bem Viver na TV, uma produção do Brasil de Fato, a retomada dos territórios ancestrais dos Guarani Kaiowá, hoje transformados em fazendas, é uma questão de sobrevivência para a preservação da vida e dos saberes da etnia.

Confinados em pequenos territórios, os Guarani Kaiwoa enfrentam o poder político e policial de ruralistas da região na tentativa de retomar suas terras ancestrais. Muitas vezes, pagam com a vida, como aconteceu recentemente no Massacre de Guapoy. 

“Na região de  Amambai, não temos mais mato. Onde nós moramos é só campo. Mesmo assim, as mulheres falam que nós temos que plantar e cultivar nossas plantas medicinais”, conta Elda.

Segundo a Agência Estadual de Defesa Animal e Vegetal do Mato Grosso do Sul, uma família de quatro indígenas precisa de 30 hectares de terra para garantir sua subsistência e desenvolver atividades econômicas sustentáveis. Na Terra Amambai, porém, segundo levantamento do Brasil de Fato, a média é de 0,8 hectare para cada unidade familiar.

O confinamento dos indígenas do Mato Grosso do Sul remonta ao início do século 20, quando o Estado brasileiro estimulou a compra das terras ancestrais por latifundiários, com a perspectiva de ocupar as fronteiras internacionais.

Ecossistema destruído

Teodora afirma que com a diminuição da floresta, muitas das mestras tradicionais precisam se deslocar para  municípios onde ainda há mata nativa preservada, em busca das plantas para produzir seus remédios.

“Não existe mais a caça, a pesca e a coleta. Não existem mais alimentos oferecidos pela própria natureza. Hoje muitas pessoas da nossa comunidade trabalham fora e fazem compras nos mercados. Compramos muitas coisas industrializadas e isso tem uma influência direta na nossa saúde. Hoje muitas pessoas da comunidade tem problema de diabetes, de pressão, de colesterol e pedra no rim e na vesícula”, conta.

Além do consumo de alimentos processados, os indígenas tem cada vez mais recorrido a medicamentos alopáticos, comprados nas farmácias, em substituição às antigas receitas. “Esses medicamentos têm vários efeitos colaterais. Curam uma doença, mas acabam provocando outras”, lamenta Teodora. “Com a perda dos territórios perdeu-se também grande parte do ecossistema. Nós pertencemos a esse ecossistema”.

Bem Viver

Nas aldeias do povo Guarani Kayowá, não é qualquer pessoa que pode se tornar uma mestra tradicional e produzir remédios. É o Nandejara, deus criador na cultura guarani, quem indica a pessoa que terá o saber e essa função na aldeia. O tratamento dos parentes é feito com rezas e cantos.

A maioria das plantas medicinais usadas pela etnia são de médio e grande porte, o que mostra a  relação muito intrínseca  da etnia com a Mata  Atlântica.

As cascas e folhas do Cedro, por exemplo, são usadas para banhos em crianças e adultos, e serve para aliviar o cansaço e as dores de cabeça. A espécie está em extinção pelo alto valor econômico na indústria madeireira.

Elda faz um apelo para os não indígenas: “olhem no caminho do Bem Viver”, diz. “Eu gosto muito de falar dessa palavra que é o bem viver. Se ela realmente fosse levada ao pé da letra a gente viveria muito bem”, finaliza a educadora. Edição: Sarah Fernandes. “Com a perda dos territórios dos povos indígenas perdeu-se também grande parte do ecossistema”, pontua educadora Guarani Kaiowá – Wikimedia Commons. Brasil de Fato.