Um sorriso fácil, um violão a tiracolo e uma voz de harmonia grave e sotaque carregado. Pia Sundhage chegou há dois anos ao comando da seleção brasileira e através de seu carisma teve rápida conexão com o país, que apostava nela para início de uma nova era no futebol feminino. Com currículo de peso, três medalhas olímpicas – sendo duas de ouro -, a técnica sueca usou da leveza da música brasileira uma forma de também mostrar seu respeito pela parceria que havia firmado.
– Eu sou muito séria. Mas, ao mesmo tempo, para ser sério e realmente se esforçar ao máximo, você precisa saber desligar. E é isso que faço. Eu desligo que me torno brasileira. Então, quando toco meu violão e faço piadas, é porque temos que relaxar. São situações importantes para se viver uma outra Olimpíada. Caso contrário, você fica exausta. Isso é muito importante, e por saber disso, você também precisa desligar – disse Pia.
Só que, dessa vez, o violão ficou em casa. Não viajará aos Jogos Olímpicos de Tóquio – o Brasil estreia dia 21 de julho diante da China com transmissão de TV Globo, SporTV e tempo real no ge.globo. Para a técnica, esse é o momento chave de se conhecer de forma mais profunda o trabalho que foi feito nos últimos dois anos por trás das notas de seu violão. Um trabalho que esbarrou nas restrições da pandemia, mas que internamente já trouxe inúmeras mudanças ao futebol feminino do Brasil. Mudanças táticas, estruturais e conceituais.
INTENSIDADE DO JOGO
A performance física tem relação direta com o estilo de jogo que Pia deseja para a seleção brasileira. Nele, é exigida uma movimentação intensa e marcação das zagueiras às atacantes. Para Rafaelle, a treinadora busca estar mais próxima a um modo de jogar como o futebol europeu atual. A missão da técnica agora é combinar essa velocidade ao aproveitamento nas finalizações ofensivas.
– A Pia trouxe para a gente esse estilo de jogo bem defensivo, bem montado, bem compacto. A gente começa a marcar desde a atacante. É um time que está todo mundo marcando. Então a gente vai muito bem defensivamente. Ela tem esse estilo, ela cobra muito da gente esse estilo que você não pode perder uma chance lá na frente. Ela cobra muito a finalização, ela cobra muito as corridas. Ela cobra estar bem fisicamente, bem taticamente . Acho que é um estilo bem parecido com o Europeu mesmo. Mas que encaixou bem com o modelo de jogo brasileiro, estilo de jogar alegre, do drible. Isso tem feito uma mistura bem legal – comenta a zagueira Rafaelle.
A treinadora também detectou um problema no jogo brasileiro. A seleção precisa render durante todo o jogo o que rende em 35 minutos. Para ela, é um diferencial atual de americanas e suecas, com quem já trabalhou em Jogos Olímpicos. As duas seleções não têm queda física. E, para a comandante, um declínio na performance se traduz em derrota no placar.
– Eu fiz algumas prioridades com muita ajuda dos preparadores físicos porque se você tem um bom time, boas jogadoras e elas fazem grandes coisas em 35 minutos, mas elas não aguentarem mais, elas irão perder o jogo. Por isso, o nível físico no Brasil, no jogo feminino, precisa melhorar. Nós precisamos elevar esse nível e eu estive em Suécia e Estados Unidos. Elas se saem muito bem e continuam jogando 90, 95 minutos. Essa ação eu vejo no minuto 15, é fantástico. Mas gostaria de ver no minuto 95 também. E para fazer isso você precisa estar em forma. E isso é uma coisa, mas também a confiança. Você ganha um pouco de confiança e isso é um pouco da parte mental para as brasileiras também no final do jogo – comenta Pia.
COBRANÇA NAS ATLETAS
Pia chegou ao comando da seleção feminina, e uma expressão logo foi decorada pelo grupo: sem “popcorn time”. Para ela, não há tempo para que uma atleta fique parada dentro de campo. Para o time funcionar com precisão é necessário sempre estar ligada no jogo e isso é diretamente relacionado a não desistir de uma jogada, recompor, não perder a bola e se lamentar, o que ela viu muito presente no estilo de formação nas jogadoras e jogadores do país. Ela fala desde sua chegada que, com o talento brasileiro combinado à obediência tática, a seleção pode figurar sempre entre as melhores.
– Tecnicamente nossas atletas sempre se destacaram. Do jeito brasileiro de jogar, improvisar. Taticamente, a gente está, acredito, mais conectada e ciente do que precisamos fazer dentro de campo. Ela é muito clara com o que quer, passa com antecedência o sistema sem tirar nossa ousadia, nossa criatividade. Taticamente as coisas estão mais claras – comenta Marta.
Pia garante que um time é, além do talento, um trabalho em conjunto. E cita que de nada adianta uma jogada criada com perfeição por uma atleta se a colega não estiver atenta para dar prosseguimento ao lance.
– Eu olhava o jogo e parecia espalhado. Aquelas duas jogavam juntas e as outras duas juntas. E eu sei que vinda da Suécia e trabalhando duro nos EUA nós precisamos trabalhar juntas. Então é como um membro da comissão técnica olhar um filme e comer pipoca. E eu adoro quando você brinca com as palavras. Então todo mundo sabe agora o que é popcorn time. E isso começou com defender, mas também dizemos quando a bola voa na esquerda e estamos prestes a fazer um cruzamento e não temos “corredoras” porque você ficou olhando um filme e comendo pipoca em vez de jogar. Então, com essa expressão, não preciso de nenhuma expressão em português para explicar – diz Pia.
OLHAR PARA A LIGA NACIONAL
Pia Sundhage acompanha a final do Brasileiro Feminino, entre Avaí Kindermann e Corinthians — Foto: Roberto Zacarias/Mafalda Press
A lista final de Pia Sundhage para as Olimpíadas dá uma ideia da relevância do campeonato nacional para ela. São 11 atletas que atuam no país em uma convocação com 22 nomes. Muitas observadas de perto por ela, que esteve em grande parte dos jogos do Brasileiro A1 ou algum integrante da sua comissão técnica. A treinadora faz questão de ressaltar a mudança no cenário e também a relevância de alguns clubes nessa nova realidade como Corinthians e Palmeiras. E faz um adendo: ainda espera ver uma jogadora europeia de ponta se interessar em atuar no Brasil pela alta qualidade da competição.
– Isso é interessante porque quando eu vim para cá, tínhamos jogadoras em todo o lugar, em todo o mundo. Algumas delas voltaram para o Brasil, o que torna a liga mais forte. E diz algo sobre a Liga. Por que você viria da China para jogar aqui? Fala sobre a qualidade da liga. Isso é importante. Divulga, na verdade, o campeonato no Brasil. E eu não sabia há cinco anos e agora sei muito mais sobre o campeonato e é muito bom. E alguns dos melhores times como Corinthians, Palmeiras. Temos muitas jogadoras desses dois clubes, muito boas. Espero que haja uma jogadora europeia: “você sabe de uma coisa? Vou tentar a liga no Brasil e obter essa experiência”. O futebol é um pouco diferente. Tenho que dizer isso comparando o Brasil a Europa e EUA. Poderia ser interessante – afirma Pia.
TREINADOR DE GOLEIRAS: MUDANÇA NOS MÉTODOS E AVALIAÇÃO DA POSIÇÃO
Aline com os óculos especiais dos treinamentos das goleiras da Seleção — Foto: reprodução CBF TV
O preparador de goleiras mudou ao longo do caminho. Veludo saiu para dar lugar a Thiago Mehl, vindo do Coritiba. A chegada também foi parte do processo de modificações e modernização colocado pela treinadora. E essa vanguarda nos trabalhos fica visível no uso intenso da tecnologia. Uma das novidades é um óculos para estimular, entre outros pontos, a velocidade de reação das arqueiras.
– É uma ferramenta muito interessante e vem sendo utilizada por muitos esportes e agora estamos testando com as goleiras da seleção brasileira. Ela visa melhorar o desempenho visual e perceptivo através da visão intermitente. As goleiras quando estão utilizando esse óculos a visão começa dentro do óculos a apagar e acender e tem vários níveis. Algumas pesquisas têm mostrado melhoras interessantes principalmente em antecipação, velocidade de reação, visão de equidade dinâmica que é quando a atletas precisa buscar movimentos em objetos. Acreditamos que tem tudo a ver com as necessidades específicas da posição – afirma Thiago Mehl.
Pia acredita que esse processo de evolução é necessário, e faz com que a todo momento a comissão técnica traga novidades: – Nós tentamos ver diferentes coisas e, não sou expert em goleiras, mas eu olho em volta e vejo, qual o próximo degrau? O que poderíamos fazer? Temos trazido as mesmas goleiras, mas o treinador de goleiras trouxe algo diferente. E estou curiosa sobre essa posição no futuro. Eu joguei quando as goleiras não eram tão boas como agora e agora elas muito melhores. Acho isso interessante.
JOGADORAS POLIVALENTES, CARRO-CHEFE DA LISTA OLÍMPICA
Desde o começo do seu trabalho, Pia Sundhage tinha em mente que, em razão do número restrito de vagas aos Jogos Olímpicos – em um primeiro momento 18 nomes, que depois foram ampliados para 22 pela Fifa – era necessário contar com jogadoras polivalentes. E esse foi um dos seus guias na montagem da lista para Tóquio. A lateral direita foi a que passou por mais testes com adaptações. Até mesmo a zagueira Bruna Benites apareceu no setor, ela que já atuou em momentos na posição. A treinadora faz questão de ressaltar que essa doação das atletas faz parte da construção de um time coeso que conta com mais de 11 titulares. Com algumas estrelas sim, mas que não jogam sozinhas.
– Acredito que temos a qualidade que precisamos. A chave é eu com minha comissão técnica colocarmos esse time junto para ser mais forte do que 11 jogadoras. É sobre ser coeso, um time é mais forte do que uma estrela. Eu penso que teremos estrelas nesse time. É importante que essa estrela tenha um time por trás e vice versa. Um time de sucesso, com frequência, precisa uma ou duas estrelas. Vamos ver como acontece. Estamos ficando cada vez mais coesos e tentamos estar na mesma página – diz Pia.
O DICIONÁRIO DE PIA
Pia Sundhage aposta não só no treinamento dentro de campo para que as jogadoras assimilem uma nova forma de jogar. Seu dicionário é vital para que o entendimento ocorra. Didática ao extremo, usa expressões repetidas pelas atletas. A principal delas: estar na mesma página. Para ela, não adianta a defesa estar pensando em um jogo diferente do ataque ou meio de campo. Nessa esteira, chega o “Cohesive Team”. A treinadora reforça que a equipe precisa ser coesa, pensar conjuntamente todas as ações como se fosse um movimento automático.
– A gente fala muito sobre ser um time e ter que jogar de forma compacta. A gente fala sempre de estar na mesma página uma ajudando a outra. Não adianta a defesa pensar uma coisa, o meio outra e o ataque outra coisa. Então, a gente tem que estar sempre pensando juntas e nos ajudando dentro de campo. A gente acredita muito nesse diferencial de estar na mesma página – afirma Bia Zaneratto.
O guia de Pia Sundhage é fielmente entendido pelas jogadoras, que ganham não somente mais noção tática, força defensiva e física, mas também preparo mental. A treinadora faz com que cada uma acredite sim na possibilidade de conquistar o ouro, mas que isso não vire um peso como já foi em outras edições em que a seleção brasileira participou. E a palavra é espalhada justamente por uma das líderes do grupo. Seis vezes melhor do mundo, Marta garante: é viver e conquistar um objetivo de cada vez, etapa a etapa.
– Sem dúvida é um momento diferente. Pelo fato de termos uma técnica estrangeira que tem toda uma história de Olimpíada também. Resultados bons com as equipes que comandou. Expectativa diferente. Ao mesmo tempo, a gente percebe que por mais que o povo brasileiro cobre resultado, medalha de ouro, a gente sente que o clima está mais leve. Hoje o Brasil para muitos talvez não seja considerado o time que vai chegar lá e ganhar o ouro, tira esse peso todo, esse clima todo. A gente sabe do nosso potencial e do trabalho que está sendo feito aqui. Vivendo dia após dia, aos pouquinhos. Um objetivo de cada vez – afirma Marta. Foto capa, Foto: Richard Callis/SPP/CBF. Fonte GE Globo.