A Baixa dos Sapateiros vai morrer? Com décadas de história, avenida continua enfrentando dificuldades

Ao longo dos anos, Baixa dos Sapateiros se transformou sempre mantendo o comércio como característica forte

“Chegamos a ter 15 funcionários. Na época de Natal tínhamos que contratar gente extra. O movimento era tão grande que não dava para fazer o caixa no mesmo dia, tinha que levar os documentos para casa para poder fazer. Trânsito parado, rua cheia de gente”. O depoimento é do comerciante Ivo Fucs, 82 anos, mas ao contrário do que possa parecer, não conta do movimento de vendas em algum shopping center da cidade. As lembranças viajam mais longe, para a época em que a Baixa dos Sapateiros fazia parte do principal centro de compras de Salvador. “Era um shopping a céu aberto, agora fica só a lembrança”, diz.

Para Seu Ivo a vida profissional não teve outro endereço. Foram 54 anos de vendas na avenida famosa. No final do ano passado, o comerciante decidiu fechar as portas da conhecida Loja Cecy. “Foram anos maravilhosos que dificilmente voltarão, tempos em que a Baixa do Sapateiro tinha muito movimento. Uma rua que chegou a ter duas mãos de trânsito, cerca de 600 lojas. Vivi minha vida inteira na Baixa dos Sapateiros e nas épocas boas não posso reclamar. Lembro de Natais em que tivemos que mandar cliente embora porque dava 23h e a loja tava cheia. Agora, a Baixa dos Sapateiros está na UTI”, lamenta.

Há quase três anos, o Jornal da Metrópole fez uma série de reportagens para denunciar as condições em que se encontrava o lugar. De lá para cá, para quem trabalha na avenida, pouca coisa mudou. “O espaço não tem público, não tem atrativo, lojas âncoras que tragam as pessoas, além da dificuldade de acesso, de linhas de ônibus que foram extintas”, comenta Fucs, enumerando algumas das razões que o fizeram decidir encerrar as atividades da loja que se especializou em vender artigos de bebê – de móveis a roupas. Meses depois, a pergunta volta: a Baixa dos Sapateiros vai morrer?

Se a situação atual da Baixa dos Sapateiros não é animadora, sua importância histórica para a capital baiana é inegável. No passado, inclusive, a questão da mobilidade foi se modificando e ajudando a transformar a avenida em uma das principais vias de Salvador. “A primeira avenida de vale de Salvador foi a Baixa dos Sapateiros e, com o passar do tempo, uma série de equipamentos para melhorar o acesso foram sendo feitos, dos bondes puxados a burro até chegarem as primeiras linhas de onibus e automóveis”, explica o historiador Rafael Dantas, comentando sobre modernidades que a Baixa usou com pioneirismo, como os tais bondes, uma tecnologia de ponta desde 1871.

Evolução

Indo ainda mais para trás na história, antes de ser avenida, a Baixa dos Sapateiros era rio. A região era centro do primeiro espaço de povoamento de Salvador e ainda via de acesso para outras importantes áreas da cidade. “O primeiro núcleo de povoamento da cidade, lá no século XVI, passa por aquela região. Em uma época em que a gente não tinha sequer uma rua, onde hoje a gente encontra a Baixa dos Sapateiros. O que se tem é uma região de vale, de rio, por onde passava o antigo Rio das Tripas, o rio onde eram despejados os restos de animais dos açougues do centro da cidade. Aquela região, desde lá, é entendida como uma região estratégica, de divisa”, explica Dantas. 

A obra que tamponou o rio, criando a avenida e permitindo a passagem de veículos, começou a acontecer desde 1851. A pavimentação da avenida veio apenas em 1860.  “O começo da ascensão, da época áurea, daquilo que hoje a gente conhece como Baixa dos Sapateiros, acontece a partir da segunda metade do século XIX. Desde lá esse espaço já começa a se tornar um lugar de referência do ponto de vista comercial, não só o comércio de produtos mais em conta, mas também o comércio em sentido amplo. Lá você poderia encontrar de tudo, um pouco”, relata o historiador. Já no século XX, outras importantes obras de modernização são feitas pelo então governador baiano JJ Seabra, que passa a nomear a avenida – um nome que nunca pegou. “Por mais importante que ele tenha sido, não conseguiu ser maior do que a irreverência do povo baiano”, diz Rafael.

Já a fama de bom lugar para comprar foi, segundo o professor, passando por etapas. É a partir de meados do século XX, nas décadas de 50 e 60, que a Baixa dos Sapateiros começa a ser lembrada pela característica de um comércio mais popular. Naquela época, o comércio mais sofisticado estava especialmente na Rua Chile. A perda do prestígio como espaço de compras foi impulsionada, ainda, por um movimento de mudança na cidade. “É algo que se acentua ao longo das décadas de 70 e 80, quando o eixo político e financeiro muda do Centro Antigo para a região da Tancredo Neves e do Iguatemi”, explica Rafael. A chegada dos shoppings centers vai, então, modificar de vez a dinâmica de compras para a população de Salvador. 

Modernidade

A inauguração do antigo Shopping Iguatemi – atual Shopping da Bahia – em 1975 foi um marco na modificação do costume de compras da cidade. Existem aqueles, no entanto, que nunca deixaram de lado o hábito de comprar na Baixa. “Lá tinha muita coisa, dava para achar de tudo, e com o preço bem mais em conta, era comércio popular mesmo”, lembra a aposentada Esmeralda Araújo, 88 anos.

Para Dona Esmeralda, a Baixa dos Sapateiros tem um significado especial. Vinda de Recife na década de 60,  o lugar foi o seu primeiro endereço. “Morei lá por 10 anos, era outra coisa. Muito cheio, movimentado, tinha cinema. Mas era bem desorganizado também, caótico mesmo. Me lembro de épocas ter enchente, inundar tudo, desabrigar gente. Você olha hoje em dia e é outra coisa”, relata. 

Se o Rio das Pedras já não faz mais parte da realidade do lugar há muitos anos, obras mais recentes foram realizadas pela prefeitura com a intenção de melhorar a região. No ano passado, foram entregues obras na Rua Cônego Pereira e a revitalização do Mercado de São Miguel, uma das principais feiras da área. A reportagem buscou o prefeito Bruno Reis para saber dos planos da nova gestão para a Baixa dos Sapateiros, mas não teve respostas até o fechamento deste texto. 

Para quem vive a realidade do lugar, algumas possibilidades surgem. “Talvez se o poder público investisse para transformar aquele lugar em um polo de algum produto específico, atraísse lojas grandes, para que o lugar ficasse famoso e conhecido como lugar para comprar tal coisa, talvez fosse uma forma de salvar a Baixa dos Sapateiros”, defende Ivo Fucs. 

Se ainda não se sabe o que o futuro reserva para a Baixa depois de tantas mudanças, é impossível negar o quanto de história já passou pela rua que Carmen Miranda imortalizou. Nomeada em razão da grande quantidade de sapateiros que por alí circulava, a oficialmente nomeada Avenida JJ Seabra tem a sua marca na história da cidade. “Ao longo de todo esse tempo, desde uma via onde passava o Rio das tripas, até se consolidar como local habitacional, de comércio, de pequenos afazeres, passando por esses melhoramentos urbanos para atingir o auge do seu momento comercial até começar a mostrar sinais de decadência. É um lugar de muita história”, finaliza Rafael Dantas.Foto : Reprodução. Metro 1.

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