Onde e quando termina um governo para começar outro nos Estados Unidos? Nos livros de história, as datas são bem definidas, mas nos bastidores, os limites se confundem, porque um novo presidente eleito pode tomar posse em um dia, mas seu trabalho e liderança são colocados em prática meses antes.
“No dia seguinte da apuração das urnas, dá-se início à fase de transição”, explica ao Brasil de Fato a cientista política Shirley Warshaw, conselheira do White House Transition Project, uma iniciativa apartidária criada para garantir a troca pacífica e ordenada das chaves da
Casa Branca. “Tradicionalmente, o que tem acontecido é essa perfeita transição de poder, em que a velha administração saúda a nova administração e compartilha dados do Governo Federal. Esse processo foi formalizado pelo Congresso apenas em 2010”.
Segundo Warshaw, essas regras são importantes para estabelecer protocolos. É neste estágio, por exemplo, que a equipe do presidente eleito tem acesso a todas as informações orçamentárias e administrativas de um departamento. Com esses dados, o novo governo
consegue implementar suas estratégias e propostas para áreas da saúde, educação, moradia e outras imediatamente após a cerimônia de posse, que dessa vez está marcada para acontecer em 20 de janeiro.
Dada a sensibilidade e relevância do processo, é natural que as administrações, por mais antagonistas que sejam, deixem de lado as animosidades para se unir em uma força tarefa que mantenha as engrenagens do governo funcionando. “Nossa democracia tem quase 250 anos agora, e a transição pacífica de poder nunca foi um problema – até este ano”, diz a advogada Sonni Waknin, líder da UCLA Voting Rights, um movimento de direito eleitoral.
A advogada sinaliza para o fato de Donald Trump negar qualquer possibilidade de diálogo com a equipe de transição escalada pelo presidente eleito Joe Biden. “Ele alega que só vai dar início a transição quando o resultado das urnas for certificado pela Administração de Serviços Gerais (GSA, na sigla em inglês)”, explica Waknin.
Segundo a imprensa estadunidense, nenhum outro presidente do país restringiu de forma tão veemente essas informações cruciais para a estruturação de um novo governo, o que ganha uma nova magnitude por conta da pandemia. “Se esperarmos até 20 de janeiro para
começar o nosso planejamento, isso vai atrasar nossa estratégia. É tão importante que essa coordenação seja feita agora. Mais pessoas podem morrer se não coordenarmos essa transição”, declarou Joe Biden em discurso na última segunda-feira, 16 de novembro.
Os Estados Unidos são o país que mais sofre com a pandemia. Mais de 220 milhões de pessoas contraíram o novo coronavírus e 3,3 milhões foram a óbito em decorrência de complicações ligadas à covid-19. Mesmo se tratando de questões de vida ou morte, Donald Trump tem nas mãos ferramentas legais para postergar essa transição, mas Joe Biden não está disposto a esperar.
“Por sorte, Joe Biden é competente e experiente. Ele montou uma equipe que tem um bom traquejo na Casa Branca e que está tendo acesso às informações necessárias, ainda que por vias alternativas”, sinalizou a cientista política.
Já para Waknin, toda essa letargia de Trump em reconhecer sua derrota nas urnas é absolutamente proposital e calculada. Não por uma questão de ego, mas por estratégia. “Todos os processos que Donald Trump inicia por conta das eleições, permitem que o presidente e sua equipe promovam uma grande campanha de arrecadação de dinheiro, e isso tem sido eficiente para levantar quantias generosas”, explica a advogada.
Além desses ganhos bem dimensionados, outro benefício mais “abstrato” que Trump experimenta ao adiar o desfecho de seu mandato é o escudo contra outros processos. “A presidência blinda uma pessoa de alguns processos, mas assim que o governo chega ao fim, é possível acionar judicialmente esse cidadão.
De acordo com investigações, Donald Trump deve satisfações legais a queixas relativas à sua conduta fiscal e empresarial, além de responder por difamação e assédio sexual, em casos que estão indo para a Corte federal”. A advogada salienta que não é possível afirmar ainda se o atual presidente vai ser de fato condenado quando deixar a Casa Branca, salientando que a ida de Trump aos tribunais depende das investigações que estão em andamento.
De qualquer forma, a partir de dezembro, é provável que o republicano seja obrigado a colaborar com a transição, se não quiser ser acionado judicialmente também por suas medidas administrativas. Edição: Vivian Fernandes. Imagem, Jim Watson/AFP. Brasildefato