ÁFRICA DO SUL: Apartheid e ‘cidades de lata’ marcam o país mais desigual – “A triste realidade. Acinte ao existencialismo humano”

Apesar do fim do regime  segregacionista, negros expulsos de suas terras e de zonas urbanas com infraestrutura enfrentam grandes obstáculos geográficos e econômicos

 

 
CIDADE DO CABO

19:19

Em fevereiro de 1966, o regime do apartheid na África do Sul decidiu tornar exclusiva aos brancos uma área central e densamente povoada na Cidade do Cabo ao pé da Table Mountain.

Nos 15 anos seguintes, mais de 60 mil negros e uma minoria “coloured” (mestiça) foram expulsos do chamado District Six, onde havia ampla infraestrutura e transporte, para campos vazios e arenosos a mais de 30 km do centro.

Chamadas de “flats” (planos), essas áreas da Cidade do Cabo abrigam hoje algumas das maiores e mais precárias favelas da África do Sul, país que é considerado o mais desigual do mundo.

Mesmo após o fim do regime do apartheid, que vigorou entre 1948 e 1994, a disparidade histórica entre pobres e ricos na África do Sul continuou subindo, a ponto de os 10% mais ricos capturarem hoje cerca de 65% da renda nacional.

Acima, estátua de Nelson Mandela na sede da Prefeitura da Cidade do Cabo e placa da década de 1960 que determinava local exclusivo a brancos no país; abaixo, casas de alto luxo na região litorânea

Na Cidade do Cabo, Khayelitsha que na língua bantu xhosa significa “Nosso Novo Lar” é a maior dessas aglomerações humanas, chamadas de “townships”.

As mais comuns são compostas de milhares de barracos feitos de chapas de metal e sustentados por armações de madeira fixadas no chão.

Presentes em quase todas as grandes cidades sul-africanas, como em Joanesburgo e sua famosa Soweto, essas “cidades de lata” acabaram reforçando a segregação geográfica entre negros e brancos que já existia desde antes do apartheid.

Em 1913, ainda sob o domínio do Império Britânico, mais de 90% do território sul-africano foi reservado exclusivamente à população branca pela chamada Lei de Terras.

Foi uma forma de consolidar o poderio inglês no país, alvo de longa disputa anterior por terras, ouro e diamantes com holandeses os primeiros europeus a colonizar a África do Sul, a partir de 1652.

Passados 25 anos desde o fim do apartheid, período em que o Estado restituiu cerca de 20% da terra própria para agricultura em favor dos negros, as “townships” não param de crescer.

Devido ao inchaço desordenado, nas bordas mais distantes de Khayelitsha milhares de seus 600 mil habitantes não têm banheiros, água encanada ou eletricidade em casa. Nem calçamento da porta para fora, onde as ruas de areia vivem alagadas durante o inverno e salpicadas de lixo.

Banheiros públicos em péssimas condições e locais para captação de água na “township” de Khayelitsha, na Cidade do Cabo

Banheiros públicos em péssimas condições e locais para captação de água na “township” de Khayelitsha, na Cidade do Cabo

Banheiros públicos em péssimas condições na “township” de Khayelitsha, na Cidade do Cabo

À noite, mulheres e crianças temem sair de casa na “township” de Khayelitsha por conta de assaltos e estupros

Crianças recolhem água em torneira pública na “township” de Khayelitsha

Criança carrega garrafa de água na “township” de Khayelitsha

Moradora de Khayelitsha, a desempregada Nokuthula Bulana, 32, diz que ali é perigoso até caminhar com os filhos à noite para ir a um dos poucos e imundos banheiros públicos disponíveis, ao lado dos quais há torneiras para captação de água e tanques quebrados para lavar roupas.

Vivem em Khayelitsha com Bulana duas crianças e quatro adultos, todos desempregados. Apesar de ter concluído um ensino técnico em serviços financeiros, ela e os demais não encontram trabalho fixo, o que obriga os sete familiares a viver com menos de 4.300 rands (R$ 1.150) ao mês, fruto de bicos e de uma pensão paga a um tio inválido.

“Enviamos emails e currículos para nada. Nem com carteira de motorista meu marido tem trabalho”, diz Bulana.

Nokuthula Bulana, 32, moradora de Khayelitsha; os quatro adultos de sua família estão desempregados

Com 57 milhões de habitantes, a África do Sul tem uma das maiores taxas de desemprego do mundo, de quase 28% e concentrada sobretudo entre os negros, que representam 80% da população. Entre eles, o índice de desocupação é maior, de 31% e chega a 50% entre os mais jovens.

Já entre os brancos, que são menos de 10% da população, o desemprego oscila ao redor de 7,5%, muito abaixo também do nível entre as demais minorias mestiça e asiática.

“A desigualdade na África do Sul é provocada pelo mercado de trabalho, mas é impossível desvinculá-la das raízes históricas”, diz Patrizio Piraino, economista da Universidade da Cidade do Cabo.

“Até o fim do apartheid, a sociedade era dividida de uma forma muito precisa, pois a cor da pele determinava o menu de oportunidades que a pessoa teria na vida”, diz.

Durante o regime do apartheid, não só a imensa maioria negra foi deslocada compulsoriamente para áreas distantes de centros urbanos onde ficavam os melhores empregos como passou a frequentar as piores escolas.

Zukuthin Kleinbaas, 65, um ex-ativista antiapartheid, lembra como em 1976 chegou a ser preso e açoitado por seis vezes nas nádegas depois de atear fogo em uma escola dentro de uma “township” da Cidade do Cabo em protesto contra a qualidade do ensino.

Passados 25 anos do fim do regime, Kleinbaas diz que, do seu ponto de vista, nada mudou. Hoje ele está desempregado e vive do dinheiro da mulher, que trabalha para um casal de alemães.

Nas últimas três décadas, com a ampliação da mecanização na agricultura e na mineração, atividades de peso no país, e da exigência por trabalhadores cada vez mais qualificados nas indústrias, o desemprego entre a população negra tornou-se estrutural.

Como a maior parte da população tem uma renda muito baixa, a desigualdade em relação aos que trabalham, sobretudo os brancos, é gigantesca.

Enquanto metade dos sul-africanos vive com menos de 130 euros (R$ 570) ao mês, os 10% mais ricos têm rendimentos médios de 7.850 euros mensais (R$ 34,5 mil).

Já o 1% mais rico viu sua participação na renda dobrar (para mais de 20%) desde 1980 e ganha hoje, em média, 25 mil euros (R$ 110 mil) mensais.

Crianças em “township” a mais de 30 km do centro da Cidade do Cabo; em zona nobre, adolescentes andam de skate em área repleta de lojas e restaurantes

Com o fim do apartheid, a África do Sul registrou queda na diferença de renda entre negros e brancos. Mesmo assim, segundo os dados disponíveis, a desigualdade subiu devido ao aumento da disparidade dentro da maioria negra.

O Relatório da Desigualdade Global, produzido pela equipe da Escola de Economia de Paris, sustenta que mudanças introduzidas no mercado de trabalho no pós-apartheid contribuíram para isso.

Sobretudo a maior oferta de empregos mais bem remunerados no setor público para uma elite de negros com maior escolaridade.

Desde o fim do apartheid, a África do Sul vem sendo governada por presidentes negros, de Nelson Mandela (1994-1999) ao recém eleito Cyril Ramaphosa, todos do partido CNA (Congresso Nacional Africano).

Ao longo desses anos, essa elite negra pode prosperar, educar melhor os filhos e abrir uma série de negócios que surgiram na esteira do fim dos boicotes internacionais que vigoraram contra o regime segregacionista até 1993.

Além disso, apesar de algumas medidas compensatórias, a distribuição da terra na África do Sul seguiu concentrada no pós-apartheid, com cerca de 70 mil fazendeiros brancos ocupando a maior parte das áreas férteis.

Fazendas na África do Sul e agricultores negros trabalhando em período de colheita

No boom mundial das commodities dos anos 2000 essa elite agrícola branca multiplicou ganhos, impedindo uma redução maior da desigualdade entre brancos e negros.

A partir de 2009, a África do Sul sofreu nova onda de concentração de renda no governo do presidente Jacob Zuma, que renunciou em 2018 acusado de quase 700 atos de corrupção que favoreceram familiares e amigos em negócios com empresas estatais.

Distante dessa elite rica, entre os negros pobres sul-africanos o local de nascimento e moradia continua sendo determinante para o nível de renda que terão no futuro.

E não ajuda o fato de que desde o fim do apartheid o número de “townships” na África do Sul ter saltado de 300 para quase 2.700.

Residências de luxo (à dir.) na África do Sul próximas a casas construídas com chapas de metal em “township”

Imagem aérea de Khayelitsha, favela com mais de 600 mil habitantes na Cidade do Cabo

Estrada corta Khayelitsha, favela que fica a 30 km do centro da Cidade do Cabo

Imagem aérea de Khayelitsha, favela com mais de 600 mil habitantes na Cidade do Cabo

Foi por ter saído de uma delas na Cidade do Cabo, em Mitchell’s Plain, que Erefaan Pearce, 42, acredita ter hoje condições de obter uma renda mensal de cerca de 40 mil rands (R$ 10,7 mil).

Especializado em solucionar problemas de informática para uma clientela branca e rica, Pearce deixou Mitchell’s Plain na adolescência graças ao esforço de sua mãe, que ficou apavorada com o lugar depois que o filho foi esfaqueado três vezes em uma tentativa de assalto.

“É pura sorte eu estar onde estou hoje. Se quisesse, seria muito difícil reproduzir a mesma trajetória”, afirma.

A partir de contatos com pessoas ricas de uma época em que atuou como DJ e com seu trabalho atual, Pearce ganha o suficiente para alugar uma casa em um bairro de classe média da Cidade do Cabo por 11 mil rands (R$ 2.900).

Mas ele acha difícil juntar o bastante para comprar um imóvel perto do centro, onde apartamentos de um dormitório custam ao redor de 1,4 milhão de rands (R$ 380 mil).

Em outras áreas da Cidade do Cabo, como nas praias de Hout Bay e Llandudno, ou em Constantia, onde quase inexistem casas sem piscina, os preços dos imóveis são muito mais altos, chegando aos 15 milhões de rands (R$ 4 milhões).

Casas de luxo próximas ao litoral e barcos em marina na Cidade do Cabo, na África do Sul

Ao contrário do que se vê nas “townships”, essas são áreas repletas de serviços e infraestrutura e fortemente vigiadas por câmeras e equipes de segurança privadas. Na África do Sul, existem mais de 9.000 empresas desse ramo, número muito superior às cerca de 2.700 registradas no Brasil.

Os poucos negros que circulam nessas áreas são na maioria empregados domésticos e podem ser vistos bem cedo ou no fim da tarde chegando em vans ou esperando esse tipo de condução, muito popular na Cidade do Cabo, para levá-los de volta às “townships”.

Uma viagem de ida e volta entre Khayelitsha e o centro da Cidade do Cabo nessas vans custa 40 rands (R$ 10) e pode levar quase duas horas em cada trecho.

Em um país onde a metade da população vive com menos de 70 rands (R$ 19) ao dia, o custo de transcorrer distâncias assim dificulta a procura por trabalho e consome boa parte da renda dos empregados no setor de serviços, no qual o rendimento médio é de aproximadamente 140 rands (R$ 38) diários.

Moradora de Khayelitsha, Nonceba Ndlebe, 39, diz ser inviável sair da “township” diariamente para trabalhar, o que acrescentaria mais despesas de transporte aos 167 rands (R$ 45) semanais que ela já gasta com a condução escolar do filho de 11 anos.

Nonceba Ndlebe, 39, que diz ser inviável sair da “township” diariamente para trabalhar

Isso, mais um novo filho pequeno, a fez deixar para trás empregos temporários que conseguia em hotéis no centro da Cidade do Cabo para se dedicar mais a um pequeno negócio de venda de roupas e a ações sociais em Khayelitsha.

Assim como outras mães pobres na África do Sul, Ndlebe é elegível para receber 420 rands (R$ 112) ao mês por filho de um programa social federal voltado a crianças carentes.

Espécie de Bolsa Família sul-africano, o Sassa (chamado assim devido à South African Social Security Agency) chega a 12 milhões de crianças e é pago a elas até que completem 18 anos.

Casas feitas com folhas de metal em Khayelitsha, na Cidade do Cabo; no inverno, ruas ficam alagadas e sujas durante a maior parte do tempo

Segundo Vimal Ranchhod, economista da Universidade da Cidade do Cabo, o governo sul-africano tem obtido algum sucesso na diminuição da extrema pobreza com programas desse tipo e com a ampliação do acesso universal à educação.

Seguindo um dos critérios oficiais para medição da pobreza renda mensal inferior a US$ 55 (R$ 215), a proporção de miseráveis no país caiu de 51% em 2006 para 36% em 2011. Mas voltou a subir nos últimos anos, para cerca de 40%.

Já o combate à desigualdade enfrenta obstáculos bem maiores, sobretudo devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho e da distribuição da terra no país.

Para Ranchhod, os adultos que viveram o fim do apartheid ainda demonstram paciência com a lentidão das mudanças na África do Sul.

“Mas as novas gerações são bem mais assertivas. Sem esperança, elas constituem um risco político e social importante”, diz o economista.

“Ou isso vai se manifestar de forma caótica ou a sociedade terá de se questionar de maneira coletiva sobre o que deve ser feito. Infelizmente, nosso histórico nunca foi o de soluções coletivas, mas de força.”

Nesse sentido, grupos políticos sul-africanos como o Economic Freedom Fighters, com 11% das cadeiras na Assembleia Nacional, pressionam o governo para que seja adotada uma política agressiva, e sem compensações, de desapropriação de fazendas e de terrenos de brancos.

Mesmo sem uma resposta assertiva do governo, a ideia provoca muitas reações na comunidade empresarial.

O temor é que haja uma crise semelhante à do vizinho Zimbábue no fim dos anos 1990, quando o país passou a confiscar terras dos brancos em um processo que desencadeou muita violência e o colapso do sistema bancário.Fernando  Canzian,Lalo de Almeida (fotos). Folha de São Paulo. Pós título, aspeado, tvsaj.com.br